Por André M. Storck Nunes
Na Roma Antiga, quando os imperadores se declararam deuses e requereram a adoração dos cidadãos, os cristãos de todo o Império recusaram-se terminantemente a prestar culto a outra divindade senão ao Deus cristão. Essa desobediência civil resultou em sérias perseguições e incriminações contra os cristãos. Milhares foram devorados por feras nas arenas públicas como o Coliseu e outros milhares padeceram com torturas, prisões e execuções sumárias.
Foi nesse contexto de grande perseguição que autores cristãos como Tertuliano e Lactâncio começaram pela primeira vez a falar da libertas religionis, ao defenderem o direito de todo indivíduo poder exercitar as suas crenças e sua fé sem ser incomodado pelo Estado ou quem quer que seja. A libertas religionis seria, pois, um direito inalienável da natureza.
A Idade Média, como é cediço, foi o período no qual quase toda a Europa permaneceu sobre rígido controle da Igreja Católica Apostólica Romana. O sumo pontífice era quem coroava os reis, numa clara demonstração de submissão e confusão da religião e poder político. Durante esse tempo o poder civil foi compelido pelo poder eclesiástico a perseguir como crime mortal todos aqueles que corrompiam a fé cristã.
Essa conjuntura perdurou por mais de mil anos antes de começar a ser rapidamente corroída com um acontecimento de suma importância para o resgate do sentido do libertas religionis: a Reforma Protestante iniciou um processo de quebra do poder da Igreja, rompimento com o poder Estatal e de busca por um Estado que respeitasse os cidadãos independentemente de sua crença. Em especial destaque a doutrina Calvinista do Sola Scriptura purificou a mentalidade cristã de diversos dogmas - que muito embora carentes de lastro bíblico - foram erigidos pela Igreja Católica através de seus Concílios. Entre eles, a separação institucional da Igreja e Estado (que remontam às palavras de Cristo: dai à César o que é de César e a Deus o que é de Deus) foi uma das bandeiras dos protestantes.
A liberdade religiosa era um valor que decorria da doutrina reformada. Lutero abriu as suas XCV Teses declarando que: é prática anticristã o uso da espada contra os heréticos e, concluiu: o Espírito de Deus não coaduna com tais coisas. À guisa de exemplo, foi sob governo do protestante calvinista Maurício de Nassau que o nordeste do Brasil viu florescer um dos mais espetaculares períodos de liberdade àquela época, judeus, católicos e protestantes podiam conviver em uma harmonia garantida e protegida pelo próprio poder político.
A teoria protestante de liberdade de consciência prevaleceu em quase todos os países protestantes. Suécia, Suíça, Holanda, Dinamarca, todos sob auspícios da fé cristã reformada adotaram pioneiramente a liberdade religiosa como direito básico dos cidadãos.
Ao analisar os sistemas de relação que os diversos Estados nacionais desenvolveram com as religiões, percebe-se que o pensamento cristão primitivo na sua essência pregava a separação da Igreja do Estado, separação esta que devia existir apenas no nível institucional e não de forma a excluir o argumento religiosos do debate político.
A análise da experiência histórica nos permite visualizar cinco modelos básicos de relação entre os Estados e as religiões:
1. O modelo de Estado teocrático:
O Estado teocrático como a própria nomenclatura que lhe é atribuída deixa transparecer, é aquele no qual a figura do “ser supremo” possui papel fundamental na elaboração e consecução das políticas do Estado.
A rigor o Estado teocrático, é aquele que confunde o poder divino com o poder político. Esta confusão chega a tal ponto que pecados tornam-se crimes contra o Estado e crimes contra o Estado tornam-se heresias. Enfim, o Estado mantém íntima relação com a religião oficial, a qual é sua legitimadora, sua fonte ideológica e grande fornecedora de quadros, ex vi o Vaticano.
Por óbvio, esse modelo de interação entre o poder civil e a religião transforma-se numa camisa de força para o desenvolvimento da espiritualidade e religiosidades alternativas dos cidadãos, de modo que a repressão é uma constante e a dissidência religiosa é considerada delinqüente.
2. O modelo de Estado confessional: Há ainda hoje alguns Estados que adotam a chamada religião oficial sem, contudo, desenvolver uma animosidade contra as demais expressões religiosas e sem impedir o desenvolvimento das mesmas. Esses Estados são confessionais por declararem oficialmente que a identidade histórico-cultural do povo e da nação está intimamente ligada a uma determinada religião, a qual é elevada ao status de religio ufficiale ou religione di Stato. Ao contrário dos Estados teocráticos, no Estado confessional os cargos de governo, as decisões de governo e a elaboração de políticas públicas não estão vinculados obrigatoriamente ao ditames da religião oficial.
Os Estados confessionais hoje também são muito poucos, e a maioria de religião protestante tais como Noruega, Dinamarca, Finlândia, Islândia e Inglaterra. Há ainda Estados confessionais católicos, tais como a Argentina, Peru e Bolívia.
3. O modelo de Estado ateu:
O Estado ateu é aquele que, suprimindo a liberdade religiosa, rejeita todas as formas de religião em favor do ateísmo. Essa política foi adotada pelos regimes comunistas com fincas na doutrina do materialismo dialético de Karl Marx durante o século XX, todavia, hodiernamente trata-se de um modelo quase extinto, encontrado apenas na Coréia do Norte (haja vista que até o Estado Cubano emendou sua Constituição no ano de 2002 e abandonou o modelo ateu para adotar a laicidade).
No Estado ateu a religião não é vista com bons olhos. Na verdade, o fenômeno religioso é analisado sob o viés da luta de classes.
O combate às cosmovisões religiosas se dá não somente na proibição de que argumentos religiosos tenham lugar no debate público e na vedação à liberdade de expressão religiosa com cultos públicos, mas também quanto no que diz respeito à vida privada dos cidadãos, os quais passam a ser compungidos ao ateísmo, como única forma considerada cívica de espiritualidade.
As ideias que fundamentam o Estado ateu têm exercido grande influência no ideal de construção do chamado Estado secularista.
4. O modelo de Estado laico:
Em suma, quando se afirma o caráter laico do Estado está se fazendo uma referência à separação institucional constitucional existente entre o mesmo e as denominações religiosas, (não ocorre uma separação ou rompimento cultural) não há confusão de ordem jurídica ou política entre as igrejas de qualquer credo e o Estado soberano.
A nosso ver, a laicidade cumpre bem o papel de proteger tanto o Estado da ingerência indevida da Igreja (ou igrejas), quanto também proteger as igrejas da intervenção abusiva do poderio estatal. A laicidade seria uma posição de equilíbrio cuja coluna vertebral seria a separação institucional entre Igreja e Estado.
O Estado laico não persegue, impede ou malfere qualquer tipo de expressão religiosa. Pelo contrário, em respeito aos direitos fundamentais individuais do seu povo, tende a resguardar a liberdade de crença. A atuação estatal moderada é talvez o maior traço distintivo do Estado laico, posto que permite o pluralismo de crenças, seja abstendo-se de refreá-lo, seja atuando comissivamente para prestigiá-lo. Em razão disso, a laicidade foi o modelo adotado pela imensa maioria das Constituições dos Estados democráticos ocidentais.
Conforme depreende-se do próprio processo de formação histórica, o Estado laico resguarda a herança cultural e histórica que compõe a identidade social do seu povo (laikós). Os valores decorrentes da fé não são avaliados negativamente ipso facto, pelo contrário são respeitados como parte integrante da identidade nacional. A preservação do patrimônio histórico-cultural inclui as religiões que povoaram o imaginário e a espiritualidade popular pelos séculos. A laicidade ao contrário do laicismo do Estado secularista reconhece o valor histórico e cultural da religião. A laicidade protege o lugar das pessoas e sua participação - ainda que com fundamento religioso - como variável ideológica legítima dos cidadãos no exercício da cidadania.
5. O modelo de Estado secularista (laicismo):
A noção secularista, seguindo a ideologia do laicismo francês, se aproxima mais de uma retomada de um Estado ateu mitigado do que efetivamente um quinto modelo de Estado.
O Estado secularista como o francês nasceu em um contexto de revolta contra a religião, no clima preparado pelo iluminismo e no dogma da autonomia da razão. Por isso, embora teoricamente afirme a liberdade de crença e religião, na prática tende a restringir a atuação dos cidadãos e dos argumentos religiosos no espaço público e político. (Recentemente a França proibiu que mulheres muçulmanas ostentem o véu islâmico em locais públicos, qualquer semelhança com o Estado Ateu não é mera coincidência). Embora afirme defender a laicidade, na verdade adota o laicismo e, não obstante se declare-se Estado laico, é de fato um Estado secularista.
Tal postura do Estado secularista é um tanto quanto anti-religiosa e afronta a liberdade de expressão. Confunde-se aqui a separação entre Igreja e Estado com uma separação impossível de se concretizar entre religião e política.
Embora pareça consentimento assentado no entendimento jurisprudencial, doutrinário e até mesmo em diversos diplomas internacionais, a liberdade religiosa tem hoje sofrido sérias ameaças com o agigantamento do ideal secularista do laicismo, daí a constante atualidade e necessidade de estudo sobre o tema.
A quase universal consagração do direito à liberdade religiosa e a adoção da laicidade por grande parte dos Estados ocidentais deixa transparecer uma falsa impressão de paz e tranqüilidade aos homens e mulheres de fé. Aqui e ali já se nota o arregimentar de setores da academia e grupos filosóficos que colocam em xeque o conteúdo jurídico da laicidade estatal e ameaçam a liberdade de expressão ao defender e tentar impor o modelo secularista de Estado, expurgando toda e qualquer participação ou simbolismo religioso do espaço cívico.
Rememorar as origens históricas da laicidade é extremamente importante para alcançarmos o verdadeiro conteúdo jurídico do ideal laico e combater visões de mundo que – retomando inescrupulosas pretensões medievais – buscam hoje, às avessas, varrer o pluralismo religioso ao classificar a religião como parte dispensável do fantasioso imaginário popular que não pode servir ao embasamento de qualquer de suas opiniões e posições na arena pública. Ao invés da consolidação do ideal laico sonhado e acalentado por alguns dos reformados protestantes e filósofos iluministas, tem-se caminhado em direção a um modelo secularista de Estado no qual a religiosidade dos cidadãos não tem logrado o devido respeito e proteção do ordenamento jurídico.
Diz-se que Tomás de Torquemada jantava feliz e cantando enquanto suas vítimas agonizavam nas fogueiras da inquisição, pensava ele estar fazendo um bem àquelas almas, livrando-as do fogo do inferno e da danação eterna. Os defensores do Estado secularista ou teocrático o fazem com a mesma alegria e boa intenção, pensando estar contribuindo para um mundo mais livre e justo no qual os espaços públicos estarão fechados aos discursos com qualquer fundamentação religiosa.
Caro André,
ResponderExcluirGostei do seu texto acima. Aborda um dos temas que venho estudando há algum tempo, desde que comecei a lecionar no campo do Direito Público, especialmente o Constitucional. Estou desenvolvendo a tese de doutoramento em Direito no tema Laicidade e Confessionalidade nas Instituições Universitárias, pela Universidade do Porto.
Permita-me uma sugestão: seria também muito útil que você informasse, no final do texto, uma bibliografia básica aos leitores, para consulta e aprofundamento de algum ponto de interesse daqueles.
Agradeço, então, pela oportunidade dessa leitura.
Robson do Boa Morte Garcez.
São Paulo-SP.